sábado, 27 de outubro de 2012

A caminho de Marte (parte 2)

Esta é a segunda parte de um extenso texto sobre a história e o estado atual do interesse do Homem por Marte, publicado no suplemento Q. do DN de 22 de setembro de 2012 com o título 'A conquista de Marte vive dividida entre a ciência e o sonho'.

Marte encanta o homem há séculos. Deram-lhe, pela cor vermelha com que o vemos a olho nu, o nome do deus romano da guerra. Mas teríamos de esperar até 1609 para lermos um primeiro estudo científico sobre os movimentos do planeta, pela pena de Johannes Kepler (4). O telescópio de Galileu (5) ajudou a ver mais e melhor este mundo vizinho. Em 1636 o italiano Francesco Fontana (6) desenhava Marte tal como o via com a ajuda do telescópio. E em 1659, Christian Huyggens (7) identificava uma primeira estrutura no planeta. Desenhava-a na forma de um triângulo (hoje sabemos ser Syrtis Major). E sete anos depois Giovanni Cassini (8) calculava a duração de um dia marciano: 24 horas e 40 minutos (apenas mais dois minutos do que a medida hoje reconhecida).

É também pelo telescópio que, em finais do século XIX, Marte volta a estar na ordem do dia e com mais protagonismo que nunca no panorama científico. Uma maior proximidade entre a Terra e Marte, em 1877, permitiu a descoberta das suas duas luas – Phobos e Deimos. E, no mesmo ano, o italiano Giovanni Schiaparelli (9) (que dirigia o observatório de Brera, em Milão) identificou cerca de 60 estruturas na superfície do planeta.

Schiaparelli
Schiaparelli era daltónico, característica que lhe permitiu uma maior sensibilidade a certas sombras no limiar da visibilidade. A sua experiência de desenho deu-lhe também habilidades adicionais que transformou nas representações gráficas que assim geraram mapas com um detalhe antes nunca visto. Era como se “um véu tivesse sido tirado e destapado a superfície de Marte” (10) como o próprio então descreveu. Das suas descrições e representações nasceram algumas designações ainda hoje usadas em grandes regiões marcianas, como Elysium, Mare Sirenum ou Syrtis Major... Mas a mais marcante e consequente das formas por si identificadas foram estruturas lineares escuras que designou como canalli. Ou seja, “canais”. Schiaparelli via-os, sobretudo, como regiões que separam grandes massas como, por exemplo, o Canal da Mancha. Mas o nome teria outro impacte e outras interpretações poucos anos mais tarde.

Em 1892, um dos primeiros textos científicos consequentes com as descrições de Schiaparelli surge em La Planète Mars et ses Conditions d’habitabilité, um livro de 600 páginas nas quais o seu autor, Camille Flammarion (11), levantava a possibilidade da existência de mares e questionava a génese natural das estruturas a que Schiaparelli chamara canais. Poderia a natureza ter traçado semelhantes linhas retas, questionava?... (12).

Dois anos depois, novas possíveis interpretações chegavam dos Estados Unidos. Mais concretamente de Flagstaff, no Arizona, onde Percival Lowell (13), animado pelas reflexões de Flammarion e motivado pelas observações de Schiaparelli, construíra um observatório astronómico a partir do qual manteve um atento programa de observações de Marte, do qual nasceram uma série de representações gráficas e hipóteses que reforçaram a crença na existência não apenas de vida no planeta, mas de uma civilização.

Percival Lowell
No texto, que publica em 1894 e acaba de ser reeditado sob o título Mars, Lowell começa por fazer observações da atmosfera marciana e desce depois à superfície para refletir sobre “o problema da água”. Com base em observações iniciadas a 31 de maio de 1894, regista dados sobre a dimensão das calotes polares, observando a forma como se contraem nos meses de verão. “Entre junho e julho as neves derretem muito depressa, a uma taxa de centenas de quilómetros quadrados por dia” e acrescenta que a “cada verão marciano desaparecem até quase nada se ver”. (14) Das suas continuadas observações conclui a existência de um oceano polar. “Há, por isso, água na superfície de Marte. Mas podemos também assinalar este corpo de água como efémero. Existe apenas quando as calotes polares derretem e, subitamente, desaparecem”, diz mais adiante. Lowell conclui também, a dada altura, que apesar de ter identificado aquela presença polar, Marte é um mundo com enorme falta de água noutras regiões: “E tem de a ir buscar a esse reservatório para o seu abastecimento anual”.

É aqui que entram em cena as estruturas que Schiaparelli identificara como cannali. E que, a dado momento, Lowell compara a formas semelhantes às inundações do rio Nilo. É claro que refere que há dificuldades na observação e que os melhores resultados dependem “das condições atmosféricas e dos melhores locais” para as realizar. Mas Lowell foca atenções, identifica ainda mais estruturas do que as registadas nos mapas de Schiaparelli, “que supunha serem os canais de origem geológica”. (15)
Nas conclusões, Lowell defende que as condições físicas observadas em Marte sugerem que não serão antagonistas à existência de vida, que há sinais de seca na superfície do planeta e que “se seres de suficiente inteligência o habitarem, então terão de recorrer a um sistema de irrigação que garanta a vida”, apontando assim a rede de estruturas identificadas como “canais” como expressão possível destas mesmas construções. Refere, maravilhado, a ordem matemática e rigorosa do sistema que sugere. “Muito provavelmente os marcianos possuem invenções que nunca sonhámos” e que terão já nos seus museus, como relíquias, aparelhos semelhantes aos que faziam a tecnologia de ponta na Terra de finais do século XIX.

4 – Johannes Kepler (1571-1639) Matemático e astrónomo alemão. Descobriu as leis do movimento planetário, processo que teve nas observações de Marte um importante contributo.
5 – Galileu Galilei (1564-1642) Matemático, astrónomo e filósofo italiano. É considerado o pai da astronomia moderna. Descobriu os quatro maiores satélites de Júpiter e realizou observações de Marte com o telescópio.
6 – Francesco Fontana (1580-1656) Astrónomo italiano. Marte tem uma cratera com o seu nome.
7 – Christian Hyugens (1629-1695) matemático, astrónomo e físico holandês. Estudou a natureza dos anéis de Saturno e descobriu a sua lua Titã.
8 – Giovanni Cassini (1625-1712) Matemático, astrónomo e engenheiro italo-francês. Descobriu quatro luas de Saturno, entre as quais Iapetus.
9 – Giovanni Schiaparelli (1835-1910) Astrónomo italiano. Realizou importantes observações de Marte em 1877. Em 1893 publicou ‘La vita sul pianeta Marte’.
10 – in A Passion For Mars, de Andrew Chaikin, Abrams, (2008), pág 15
11 - Camille Flammarion (1842-1925) Astrónomo francês. Publicou várias obras de divulgação científica, entre as quais La planète Mars et ses conditions d’habitabilité (1892).
12 - in A Passion For Mars, de Andrew Chaikin, Abrams (2008), pág 16
13 – Percival Lowell (1855-1916) Empresário, matemático e astrónomo norte-americano. Fundou nos anos 90 do século XIX um observatório em Flagstaff (Arizona) onde efeutou longas observações de Marte. Uma das consequências do seu trabalho em Flagstaff foi o processo que permitiu a descoberta de Plutão.
14 - Mars, de Percival Lowell, ed. impressa pela Amazon (2012), pág 17
15 – ibidem, pág 42


Leia aqui a primeira parte deste texto

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